As condições são adversas: já passa das dez da noite, e nunca trabalho depois das sete. Preciso da crônica pronta amanhã de manhã e ainda não sei por onde começar. Queria escrever sobre Haia e não conheço nada além do hotel, o hall de um teatro e um restaurante indonésio. Poderia falar dos meus tradutores, dos outros cronistas ou dos organizadores do festival, mas foram simpáticos demais para se tornarem personagens. Só me resta, então, fazer o que deve parecer óbvio para quem leu a primeira crônica: contar o que aconteceu em Amsterdam.
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É uma da tarde quando saio da estação de trem e me deparo com a cidade sob um sol suave, de outono. Giro a cabeça de um lado a outro e logo me lembro dos pequenos prédios, das bicicletas, das pessoas exageradamente altas. Arrastando a mala, me dirijo à casa de um amigo português que vai me abrigar por uma noite e, no caminho, ganho a certeza de que poderia viver aqui.
Não tenho muito tempo, por isso como uma salada rápida e pego um táxi: para o museu judaico, por favor. Quando entrego o bilhete ao senhor da entrada, ele me adverte: melhor ir para a sinagoga portuguesa antes, fecha às quatro. Para ser sincera, não faço questão de tal visita, mas me sinto constrangida diante de seu conselho e termino por dar meia volta. Não me arrependo.
Meia hora depois, assim que entro no museu, uma senhora se aproxima para perguntar se posso ajudar com uma pesquisa. Quer saber de onde vim, quantos anos tenho e por que estou lá. Hesito entre dizer a verdade ou dar uma resposta rápida e banal, para não postergar ainda mais o encontro com meu antepassado. Opto pela primeira alternativa, e vejo seus olhos encherem d’água. Esperava uma resposta similar a todas as outras e de repente se vê diante de uma história com corpo, cheiro, realidade.
Ela me explica a organização do museu e vou direto para o segundo andar, onde se localiza o material do século XVI ao XIX. Observo os quadros e as gravuras, além de ler alguns textos com calma, porque no fundo, apesar da ansiedade, o que quero é mesmo adiar o esperado momento. Muitas vezes a expectativa vale mais do que o acontecimento. Na fantasia, há pouco espaço para a frustração.
Numa mesa de vidro, lá está ele, igualzinho, a mesma gravura herdada por meu avô, com a mesma barba longa, o mesmo pano sobre o cabelo em forma de torre. Salom Salem nasceu e morreu na Turquia – ao contrário do que eu pensava – e veio em 1652 para Amsterdam com o objetivo de imprimir seu livro. Por essa eu não esperava: um livro? Que livro?
Desço as escadas novamente e retomo a conversa com a senhora do museu, que me aconselha ir ao centro de informações. Sou recebida por um rapaz muito simpático que procura nos arquivos qualquer informação sobre Salom. Descobre apenas que era rabino de Adrianopolis (mais tarde, o Google me revelaria uma cidade homônima no sul do Brasil). Decepcionado com a escassez de material, ele me passa dois números de telefone e acrescenta: Você foi à sinagoga portuguesa? Eles têm muito material da época. Se você pesquisar, talvez encontre um exemplar desse livro. Se é que o livro foi impresso…
Olho no relógio, são quatro e meia, a sinagoga já fechou. Amanhã sigo para Haia e não tenho nenhum plano de voltar a Amsterdam. É sempre assim: vou em busca de respostas e retorno com novas perguntas. Num instante, as possibilidade se multiplicam. Quando isso acontece é o primeiro sinal de um romance por vir. Sim, um romance, eu penso. Sair da Turquia para a Holanda em pleno século XVII, atravessar fronteiras, fazer uma longa viagem para imprimir um livro e marcar o rosto numa gravura que, muitos anos depois, iria parar numa casa no Rio de Janeiro – a trama me parece interessante. Sem falar, é claro, na hipótese de Salom Salem ter conhecido Spinoza.
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E por falar nele, também estive frente a frente com um retrato seu. Meu pai que me desculpe, mas não somos nada parecidos.
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Acabo de descobrir que Spinoza morreu em Haia. Quem sabe amanhã não deambulo pela cidade em busca de seus rastros?